Desafio de Escrita

Não sei se motivada pelo último workshop que frequentei em 2020 (na companhia fantástica da ), se pela viragem deste ano redondo, desafiei-me a mim mesma a escrever com rotina. Para mim, estas são duas palavras que não consigo colocar no mesmo bolso da mochila, de tão antagónicas que às vezes me parecem. Escrever vem da folha branca e do lápis por afiar, do cheiro a bolachas de canela ou do cantar suave da passagem do tempo. Mas a verdade, é que é a rotina que traz o conforto quentinho de quem nos conhece tão bem. Por isso, em 2021 vou acabar a minha semana a escrever sobre a primeira palavra que ouvir / ler, mal acorde.

Começou com Casa, uma palavra que eu gosto tanto e me levou a uma pequena reflexão pessoal. Depois vieram estas:

15/01/2020 – [Hipermercado]

Eram 8h30 da manhã. Não sabia bem se o motivo era o adiantado da hora, se o facto de ter levado para a cama todos os fantasmas que fracassou em eliminar do pensamento. Qualquer que ele fosse, ali estava ela, sentada num parque de estacionamento de um hipermercado que ainda nem tinha aberto portas.

Aumentou o volume do rádio, para de imediato o desligar. Doía-lhe a cabeça. Doía-lhe o corpo. Doía-lhe a falta de vontade que parecia ter-se colado a ela como uma lapa. Olhou-se ao espelho. Não se reconhecia na imagem pálida e velha que via do outro lado. Em que momento do caminho deixou de fazer por si? De procurar vida na vida? De sorrir só porque sim.

Viu as grades a levantar. Pessoas a saírem dos seus carros, uns de gorro a tapar as orelhas, outros a esfregar as mãos como se abraçassem com força a si mesmos. O dia começava com passos firmes. Invejou a vida da rapariga de sobretudo cinzento que, de café na mão, sorriu a dar os bons dias. Imaginou a alegria do senhor de cabelo grisalho que certamente ia comprar um presente para dar ao neto no almoço de sábado. 

Devagar abriu a porta do carro e saiu.

22-01-2021 [Aluno]

Enquanto percorria com passo firme, os corredores de um supermercado praticamente vazio, repetia, mentalmente, a lista das compras. Fruta, legumes, iogurtes, manteiga e queijo… queijo… e a seguir? Sabia que lhe estava a faltar alguma coisa. Até a memória lhe pregava partidas, atualmente. Mas, caramba, porque é que continuava a fazer listas de compras se se esquecia sempre delas na bancada da cozinha!

– Olhem se não é a minha aluna preferida!

Demorou alguns segundos a perceber de onde vinha a voz rouca que, meio em surdina, a tomou de sobressalto.

Por trás da máscara preta, uns enormes olhos azuis fitavam-na.

– Já não me conheces, miúda?

Conhecia-o sim, claro. De outra vida, pensou. De uma altura em que o conhecimento a eletrizava. Em que acreditava ser capaz de tudo. Quando não havia horários nem agendas fartas em reuniões.

– Grande Professor Reis!! Há quanto tempo não te via, João!

Tinham sido colegas na universidade. Estudavam juntos em mesas pintalgadas de cervejas e tremoços. Ele, o mais incrível contador de histórias que alguma vez conhecera, recitava a matéria de um fôlego só, enquanto ela o ouvia, embevecida, fixando cada palavra. Por brincadeira, tratavam-se como aluna e professor, numa platónica relação que durou enquanto a vida não os colocou em caminhos opostos.

Olhou-o mais atentamente. A idade tinha-lhe sido simpática e trazido ainda mais charme. Os cabelos brancos desgrenhados caíam-lhe sobre o rosto moreno. Numa mão trazia uma garrafa de vinho, na outra um livro que, pelo tamanho, mais parecia uma enciclopédia.

– Tens tempo para um café?

Na verdade, não tinha. O trabalho amontoava-se na secretária, ainda tinha que terminar as compras e passar na padaria.

– Vá, deixa-te desses cálculos mentais e anda comigo. Perderes uma hora da tua vida não te vai fazer mal nenhum.

Deixou-se ir.

29/01/2021 [Jorge Jesus]

– Recordas-te desta mesa? Perguntou ele.

Riu à gargalhada enquanto lhe puxava a cadeira para a ajudar a sentar.

– “Plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho”. Dizias de mão ao peito. “Estas são as minhas metas para os próximos anos.”

Olívia sorriu com a imitação que fazia dela.

– Vê lá…! E passados quase 20 anos, nem árvore nem filho e o mais perto que estive de escrever um livro, foi quando o Jorge Jesus ganhou a liga dos Campeões. Ou seja… nunca!

Estavam sentados de frente para uma praça da república quase deserta, cadeiras encostadas lado a lado. E enquanto trocavam memórias, pediram chá e torradas.

– O que é que tens feito, perguntou-lhe ele por fim.

Ficou em silêncio. Não sabia bem o que dizer. Nada, parecia-lhe completamente errado, mas quando tentava identificar algo de significativo, não encontrava nem os momentos nem as vitórias que lhe parecessem dignas de partilha.

“Trabalho”. Saiu-lhe meio a medo. Sem perceber se afirmava ou se perguntava se a resposta estaria correta.

Devagar João poisou a chávena na mesa. Agarrou os braços da sua cadeira e com gentileza virou-a para ele. Fixava o olhar nos olhos dela. Sentiu um arrepio que lhe parecia correr o corpo. O seu coração saltava com tanta vontade que parecia querer sair-lhe do peito. Não era desconforto o que sentia, mas não sabia bem definir. Reconhecia a casa naquele olhar. E isso parecia bastar-lhe.